sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Cozinha também é cultura #10

A dica de hoje vai pro livro: "O Arroz de Palma", de Francisco Azevedo (R$ 45 reais, Editora Record). “Uma história de família como um almoço de domingo”, diz o autor.

O livro é narrado por Antônio e é impressionante como Francisco Azevedo consegue dar vida ao personagem, ao ponto de você ter certeza que ele realmente existiu e escreveu cada linha! Aliás, eu queria chegar aos 88 anos como Antônio (personagem principal do livro), uma pessoa observadora, romântica (e não apenas no sentido amoroso, e sim na capacidade de romancear cada situação) e que sabe se auto analisar de um jeito que nem pessoas com décadas de terapia conseguem.

Achei bem engraçado que, mesmo misturando elementos quase fantasiosos (como o arroz de 100 anos que não se estraga e faz milagres pela família), tudo o que se passa é muito verdadeiro, muito real, coisas que acontecem com todo mundo.

Não importa se a sua família é numerosa como a de Antônio e não importa se você tem 80 anos ou 20, é impossível não se identificar com cada linha. Uma das frases mais repetidas nas 368 páginas é que “família é um prato difícil de se preparar”, e cada argumento dado para justificar essa citação é válido.

Aproveitando o dia, que por sinal está maravilhoso, diria que esse livro é tão gostoso quanto um dia de domingo! 
E tem domingo melhor do que domingo em família?!
Essa é a minha!!!


Trecho do livro:

Velho sente saudade de mãe e de pai. Tudo faz tanto tempo! Velho quer colo, quer colher na boca vindo de longe com motor de aviãozinho, quer - banho tomado - que lhe ponham na cama, lhe aconcheguem com lençol limpo e travesseiro macio. Uma história conhecida, uma cantiga de ninar, um beijo de boa-noite. A porta do quarto um pouquinho aberta, com a luz do corredor acesa - o ponto de referência é sempre bom...
Preciso me concentrar. É essencial. Por quê? Ora, que pergunta! Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema - principalmente no Natal e no Ano-Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Ás vezes, dá até vontade de desistir...
E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e a cebola. Não se envergonhe se chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
...
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe "Família à Oswaldo Aranha", "Família à Rossini", "Família à Belle Meunière" ou "Família ao Molho Pardo" - em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é "À Moda da Casa". E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras, apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada - seriam assim um tipo de "Família Diet", que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
...
Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente, na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

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